Ele já estivera assim antes… mas desta vez era de algum modo diferente…
Estava adoentado, o coração batia-lhe profusamente, enquanto o estômago se revolvia, como se todo o seu conteúdo estivesse subitamente contido de vontade própria e tivesse decidido sair, esbarrando-se contra as paredes, naquilo que constituía a vossa tão apreciada expressão ‘borboletas no estômago’, e, a par de se encontrar sob o olhar de dezenas de pessoas, quase nu, e com uma tremenda sensação de medo e pânico, sentiu aquele característico som de borracha a quebrar, quando tentou colocar a sua touca.
A sensação de ansiedade e o desespero eram enormes, tendo em conta que tinha que fazer esperar todos os restantes nadadores, árbitros e assistência, enquanto o treinador surgia, correndo das bancadas, para lhe entregar a touca extra de que necessitaria para a prova, que neste momento o deixava num estado de nervosismo tal, que lhe era insuportável esperar muito mais tempo.
Então, feito o nervoso aquecimento, composto por um esbracejar, em qualquer outra circunstância ridículo, que naquele momento fazia o sangue percorrer-lhe nos braços, pelo menos de forma mais profusa, ouviu o apito continuo, indicando que era tempo de subir para a prancha.
Uma rápida sacudidela de braços e pernas, numa fútil tentativa de relaxar os músculos e estalar articulações, um colocar estratégico dos pés na ponta da prancha, de modo a que os dedos dos mesmos quase a agarrassem, e um olhar para o vazio rápido, numa ténue tentativa de abstracção de tudo à sua volta, enquanto a típica sensação de pânico o varria tão completamente, foi tudo quanto lhe foi possível no curto tempo que lhe restou, antes da ordem que o faria agachar-se sobre a prancha, pouco antes do salto que teria que dar.
Ao lado, o seu principal rival, a única pessoa que fazia aquela prova tão bem como ele, lutava, como ele, por lugar na equipa que representaria todo o arquipélago, ambos a basicamente metro e meio um do outro, à espera da partida.
Seria o mesmo de sempre.
Um início de prova rápido, com uma considerável distância sem uma única respiração, seguido de uma viragem rápida, se bem que muito próxima da parede, e depois, uma relativamente longa sequência de braçadas dolorosas, até à viragem seguinte, à media que o cansaço se iria acumular, até ao final da prova.
Pelo menos era o que este esperava que se seguisse ao apito de partida.
A tensão que sentia naquele intervalo de tempo tão reduzido como o bater das asas de uma qualquer ave, atormentava-o à medida que, numa fracção de segundos, tentava abster-se de todas essas preocupações e ideias, que o desconcentravam da simples tarefa que tinha em mãos.
Tentava fazer desvanecerem-se todos esses incómodos, pois sabia muito bem do que dependia o seu bom desempenho naqueles metros que iria nadar, à máxima velocidade que o seu já fatigado e doente corpo lhe permitiria, quando a ditosa expressão surgiu na voz de um dos árbitros que iriam coordenar a prova: ‘Aos seus lugares! ‘.
Naqueles rápidos dois segundos, todo o medo, ansiedade, desespero e nervosismo combinados numa única amalgama de um qualquer sentimento, foram de tamanha intensidade que, no momento do derradeiro apito, desagregaram-se sob o efeito da adrenalina que só um apito de partida conseguia injectar no corpo de alguém.
Num décimo de segundo, as suas pernas, comprimidas sobre o seu peito, tal qual as pernas de um feto no útero da sua mãe, distenderam-se num movimento ao estilo de uma mola aliviada de uma carga que a outrora a comprimia, ao mesmo tempo que os braços, esticados, presos pelos dedos à prancha de onde saltava, se soltavam e eram projectados para cima e para a frente, à medida que, tal como uma tigre se debruça, num derradeiro salto sobre a sua presa, todo o seu corpo se projectava sobre a água, relativamente quente, onde se sentia mais em casa que em qualquer outro lugar, e, à media que todo o corpo, ainda no ar, imitava um movimento ondulatório, cujo derradeiro objectivo era não mais que diminuir a resistência que o corpo sofreria ao entrar em contacto com a água da piscina, este desceu no ar, sentindo o primeiro toque desta sobre o seu corpo, outrora seco.
Dizem que não há lugar mais pacífico que a água em repouso…
Realmente vocês humanos têm uma tendência tremenda para descrever todos esses adjectivos que utilizam, com base na compração com algo do qual se esquecem fazer parte.
No entanto, não podiam estar mais errados quanto à utilização das palavras ‘paz’ e ‘água’ no contexto onde ele se encontrava.
A vossa expressão ‘campo de batalha’, talvez seja mais adequada, na descrição daquilo que foi o que se seguiu à sua ‘queda’ que, na gíria do desporto em causa, tendem a chamar de mergulho.
Após o primeiro contacto com aquele que foi o meio que nos juntou em primeiro lugar, seguiu-se, tal como ele previra, uma série de metros sem qualquer contacto seu com o ar da superfície, à medida que fazia o seu corpo ondular sob a água que o envolvia, até sair para a superfície, ainda sem respirar, e começar as braçadas que o iriam impelir ao longo da prova.
A adrenalina que sentia percorrer-lhe todo o corpo era de uma intensidade esmagadora, fazendo com que cada braçada fosse mais forte que a anterior.
Ao seu lado, o seu rival experimentava, provavelmente, as mesmas sensações, à medida que se viam um ao outro, a cada viragem, ora uma, ora outra vez, á frente do companheiro de prova, cada um, sem assim o intencionar, a puxar pelo esforço do outro.
Toda a concentração desaparecera, quando a competição tomou lugar.
No entanto, ao invés de se deixar levar pelo cansaço, o facto de estarem tão renhidos, levava a que cada braçada sua, mesmo sem forças para tal, fosse cada vez mais larga, mais forte, como se da sua vida dependesse que o seu braço empurrasse o máximo de água possível, fazendo o seu corpo avançar mais um quarto de metro, por cada uma dessas braçadas dadas, à medida que, tal qual torpedo expelido por um submergível militar, o seu corpo deslizava sobre a água, tal era o desejo de ganhar, de mostrar que merecia pertencer aquele mundo, e que todo o seu trabalho até então teria um resultado a essa altura.
Restavam uns últimos metros, à volta de 3 piscinas, aproximadamente, quando percebeu que estava na recta final daquela que era a prova mais poderosa que alguma vez fizera.
A última piscina, nadou-a com esforço, e, assim, fê-lo como se da primeira, na qual entrara na água minutos antes, se tratasse.
A forma com viu o braço do seu rival tocar a parede menos de um segundo antes de o seu embater contra a placa de pressão que mediria, com o cronómetro, o tempo que demorara a nadar aqueles metros, foi-lhe inócua, comparado com o facto de saber que tinha feito a prova da sua vida.
Ao subir à superfície e ver o tempo que fizera, a diferença que separara o seu toque na placa do toque do seu principal adversário, e o sorriso que lhe invadiu a face ao saber que ambos haviam batido um recorde juntos, seguido do abraço de genuína felicidade trocado pelos dois amigos, ainda que rivais dentro de água, um sem o qual o outro não teria atingido tal resultado, e saber que a diferença que os separara era efectivamente ínfima, sentiu-se invadido de uma tremenda satisfação.
Via essa mesma satisfação patente na cara do seu treinador, que, descoroçoado com o segundo lugar alcançado pelo seu nadador, ainda assim sorria, pela forma quase perfeita com que este executara a prova, o felicitou de braços abertos.
Ele finalmente provara aos seus adversários, ao seu treinador, ao seleccionador, mas acima de tudo, a si mesmo, que todo o trabalho e esforço, lhe tinham valido aquilo que ele mais queria naquele momento, um lugar na equipa, e a memória da tarde onde nadara a melhor prova da sua vida, os 400 metros livres em piscina curta.
domingo, 14 de dezembro de 2008
Subscrever:
Mensagens (Atom)