quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Pó ao pó...

Ele prometera-se a si mesmo que não ia chorar, mas a verdade é que ele não sabia o que fazer…
Naquela manhã, ele estava de luto, e ele nunca estivera de luto em toda a sua vida.
Nunca tivera que dizer adeus a alguém que realmente lhe importasse, ou por quem os seus sentimentos fossem genuinamente mais que simples respeito ou admiração.
Quando o tio lhe morrera, este tinha apenas 4 anos, e pelo que consegui apreender das suas memórias, nada além de uma pequena situação de brincadeira infantil lhe restava na mente, acerca do irmão do seu pai, que morrera quando o seu coração pura e simplesmente decidiu que era tempo de desistir.
No entanto, desta feita, o seu ídolo, o senhor das cassetes com os desenhos animados, o homem que ficara com ele na sala, só porque este não se achava capaz de ver aquele filme particular sozinho, o homem que fizera do seu pai quem ele era, em suma, o seu avô, ia desaparecer sob sete palmos de terra, e este tinha de lhe dizer adeus para sempre.
Muitos poderão discordar de mim, mas não percebo qual a necessidade de chorar aqueles que passam, afinal de contas, nada neste mundo é eterno, tão certo como eu também não o sou, e essa mesma passagem, não passa de uma simples transformação, como tantas das quais fiz eu parte, enquanto constituinte do todo e do nada que é este universo.
Mas eu não sou o humano que ele é, e não me cabe sequer compreender o que este sentia naquele momento… nunca ninguém o foi capaz.
Era estranho, por demais estranho, ver toda a família reunida, em reverência daquele que em breve ia desaparecer.
Na igreja, via os tios e tias, todos eles ali sentados, juntos de sua mãe, a recente viúva, chorando a morte daquele que fora o grande patriarca da família, a numerosa família que ali se encontrava, praticamente toda ela reunida, para se despedir.
Teria achado toda a situação extremamente bonita e tocante, fossem outras as circunstâncias.
Mas afinal de contas, ele sabia muito bem porque estava ali, e isso só por si, era terrível em mais sentidos do que alguma vez estivera disposto a aceitar.
No entanto, algo ainda mais estranho se passava na sua cabeça…
Toda a surrealidade da situação o atingia de forma tal, que ao invés de uma pura tristeza, e da dor que sentira na noite anterior, ao receber a notícia, este sentia uma terrível e insuportável apatia.
Naquele momento, enquanto o padre falava da pessoa que este tanto estimava, e o carinho por essa mesma pessoa era demonstrado em toda a sua beleza, este não conseguia verter nem uma única lágrima.
Mas mais estranho que isso, foi perceber que o mesmo se passava com os seus primos.
Mais tarde pensou tratar-se de choque, mas naquele momento, sentiu-se horrível e inapto face a tudo o que assistia, enquanto a apatia tomava conta dele.
No entanto, nada disso se podia comparar com a sensação que foi, no final da cerimónia religiosa, seguir em fila, para um último olhar sobre o corpo daquele que fora o seu avô.
Este jazia sobre uma mesa de madeira, belissimamente envernizada, sobre a qual se encontrava uma espécie de toalha mortuária, esplêndida, e até mesmo quase perfeita para a receber o corpo que recebia, coberto pelas flores que todos os familiares haviam trazido, com o tom de pele mais esbranquiçado que ele alguma vez vira, e com a pele tão gelada quanto o tampo da bela mesa onde se encontrava deitado.
Ao vislumbrar os membros da família à sua frente, via-os beijar a testa do seu ente querido uma ultima vez, num derradeiro gesto de carinho e afeição face aquele que ali se encontrava, deitado e inerte, sob a magnifica mesa de madeira envernizada, que ele nunca esqueceria, e vendo tudo isto, achou que o deveria fazer também, como que para provar a si mesmo que, apesar de não conseguir chorar, tudo o que sentia culminava naquele beijo, o ultimo que colocaria sobre a face do grande avô que ali se encontrava.
A caminhada até ao cemitério, composta pela família, amigos e admiradores da pessoa que partira na efémera noite anterior, fazia-se compor por um tom de decoro e decência, reminiscentes de algo como um verdadeiro cortejo real.
Nesse caminho, transportava uma pesada coroa de flores, que anteriormente adornava o corpo do seu avô, coroa essa quase tão pesada como a sua perda naquele momento.
Na chegada ao cemitério, percorrido o labirinto de intrincadas lápides e mausoléus, deparou-se com a ‘cova’, um tosco buraco, onde ali iria ficar a pessoa que na noite anterior estava viva.
Foi então que desabou toda a apatia que até então o mantivera controlado, ao ver, sob a queda das gotas de chuva sobre o caixão, que lentamente era baixado até ao fundo da ‘cova’, onde para o resto dos tempos, se é que me posso dar ao luxo de o supor, ficaria ali o que restava daquela que fora a pessoa que naquele momento, o fazia, assim como ao seu pai, que abraçava, chorar as lágrimas da dor de perder o seu avô, ao mesmo tempo que via o resto da família demonstrar o mesmo sofrimento.
Feitas as despedidas, vertidas todas as lágrimas, e rezadas todas as preces, lá se encontrava ele, naquilo que parecia apenas mais uma simples reunião da numerosa família a que pertencia, com o orgulho que mais tarde se viria a desmoronar na falsa ideia da família unida que tinha, tanta falta iria fazer quem acabava de partir.
Não obstante, toda a mortificação, todo o sofrimento, e todo o surrealismo daquele dia, havia ao menos mais uma distracção face a tudo aquilo, enquanto via com desagrado, o Benfica perder mais uma eliminatória para a Liga dos Campeões…