domingo, 14 de dezembro de 2008

400

Ele já estivera assim antes… mas desta vez era de algum modo diferente…
Estava adoentado, o coração batia-lhe profusamente, enquanto o estômago se revolvia, como se todo o seu conteúdo estivesse subitamente contido de vontade própria e tivesse decidido sair, esbarrando-se contra as paredes, naquilo que constituía a vossa tão apreciada expressão ‘borboletas no estômago’, e, a par de se encontrar sob o olhar de dezenas de pessoas, quase nu, e com uma tremenda sensação de medo e pânico, sentiu aquele característico som de borracha a quebrar, quando tentou colocar a sua touca.
A sensação de ansiedade e o desespero eram enormes, tendo em conta que tinha que fazer esperar todos os restantes nadadores, árbitros e assistência, enquanto o treinador surgia, correndo das bancadas, para lhe entregar a touca extra de que necessitaria para a prova, que neste momento o deixava num estado de nervosismo tal, que lhe era insuportável esperar muito mais tempo.
Então, feito o nervoso aquecimento, composto por um esbracejar, em qualquer outra circunstância ridículo, que naquele momento fazia o sangue percorrer-lhe nos braços, pelo menos de forma mais profusa, ouviu o apito continuo, indicando que era tempo de subir para a prancha.
Uma rápida sacudidela de braços e pernas, numa fútil tentativa de relaxar os músculos e estalar articulações, um colocar estratégico dos pés na ponta da prancha, de modo a que os dedos dos mesmos quase a agarrassem, e um olhar para o vazio rápido, numa ténue tentativa de abstracção de tudo à sua volta, enquanto a típica sensação de pânico o varria tão completamente, foi tudo quanto lhe foi possível no curto tempo que lhe restou, antes da ordem que o faria agachar-se sobre a prancha, pouco antes do salto que teria que dar.
Ao lado, o seu principal rival, a única pessoa que fazia aquela prova tão bem como ele, lutava, como ele, por lugar na equipa que representaria todo o arquipélago, ambos a basicamente metro e meio um do outro, à espera da partida.
Seria o mesmo de sempre.
Um início de prova rápido, com uma considerável distância sem uma única respiração, seguido de uma viragem rápida, se bem que muito próxima da parede, e depois, uma relativamente longa sequência de braçadas dolorosas, até à viragem seguinte, à media que o cansaço se iria acumular, até ao final da prova.
Pelo menos era o que este esperava que se seguisse ao apito de partida.
A tensão que sentia naquele intervalo de tempo tão reduzido como o bater das asas de uma qualquer ave, atormentava-o à medida que, numa fracção de segundos, tentava abster-se de todas essas preocupações e ideias, que o desconcentravam da simples tarefa que tinha em mãos.
Tentava fazer desvanecerem-se todos esses incómodos, pois sabia muito bem do que dependia o seu bom desempenho naqueles metros que iria nadar, à máxima velocidade que o seu já fatigado e doente corpo lhe permitiria, quando a ditosa expressão surgiu na voz de um dos árbitros que iriam coordenar a prova: ‘Aos seus lugares! ‘.
Naqueles rápidos dois segundos, todo o medo, ansiedade, desespero e nervosismo combinados numa única amalgama de um qualquer sentimento, foram de tamanha intensidade que, no momento do derradeiro apito, desagregaram-se sob o efeito da adrenalina que só um apito de partida conseguia injectar no corpo de alguém.
Num décimo de segundo, as suas pernas, comprimidas sobre o seu peito, tal qual as pernas de um feto no útero da sua mãe, distenderam-se num movimento ao estilo de uma mola aliviada de uma carga que a outrora a comprimia, ao mesmo tempo que os braços, esticados, presos pelos dedos à prancha de onde saltava, se soltavam e eram projectados para cima e para a frente, à medida que, tal como uma tigre se debruça, num derradeiro salto sobre a sua presa, todo o seu corpo se projectava sobre a água, relativamente quente, onde se sentia mais em casa que em qualquer outro lugar, e, à media que todo o corpo, ainda no ar, imitava um movimento ondulatório, cujo derradeiro objectivo era não mais que diminuir a resistência que o corpo sofreria ao entrar em contacto com a água da piscina, este desceu no ar, sentindo o primeiro toque desta sobre o seu corpo, outrora seco.
Dizem que não há lugar mais pacífico que a água em repouso…
Realmente vocês humanos têm uma tendência tremenda para descrever todos esses adjectivos que utilizam, com base na compração com algo do qual se esquecem fazer parte.
No entanto, não podiam estar mais errados quanto à utilização das palavras ‘paz’ e ‘água’ no contexto onde ele se encontrava.
A vossa expressão ‘campo de batalha’, talvez seja mais adequada, na descrição daquilo que foi o que se seguiu à sua ‘queda’ que, na gíria do desporto em causa, tendem a chamar de mergulho.
Após o primeiro contacto com aquele que foi o meio que nos juntou em primeiro lugar, seguiu-se, tal como ele previra, uma série de metros sem qualquer contacto seu com o ar da superfície, à medida que fazia o seu corpo ondular sob a água que o envolvia, até sair para a superfície, ainda sem respirar, e começar as braçadas que o iriam impelir ao longo da prova.
A adrenalina que sentia percorrer-lhe todo o corpo era de uma intensidade esmagadora, fazendo com que cada braçada fosse mais forte que a anterior.
Ao seu lado, o seu rival experimentava, provavelmente, as mesmas sensações, à medida que se viam um ao outro, a cada viragem, ora uma, ora outra vez, á frente do companheiro de prova, cada um, sem assim o intencionar, a puxar pelo esforço do outro.
Toda a concentração desaparecera, quando a competição tomou lugar.
No entanto, ao invés de se deixar levar pelo cansaço, o facto de estarem tão renhidos, levava a que cada braçada sua, mesmo sem forças para tal, fosse cada vez mais larga, mais forte, como se da sua vida dependesse que o seu braço empurrasse o máximo de água possível, fazendo o seu corpo avançar mais um quarto de metro, por cada uma dessas braçadas dadas, à medida que, tal qual torpedo expelido por um submergível militar, o seu corpo deslizava sobre a água, tal era o desejo de ganhar, de mostrar que merecia pertencer aquele mundo, e que todo o seu trabalho até então teria um resultado a essa altura.
Restavam uns últimos metros, à volta de 3 piscinas, aproximadamente, quando percebeu que estava na recta final daquela que era a prova mais poderosa que alguma vez fizera.
A última piscina, nadou-a com esforço, e, assim, fê-lo como se da primeira, na qual entrara na água minutos antes, se tratasse.
A forma com viu o braço do seu rival tocar a parede menos de um segundo antes de o seu embater contra a placa de pressão que mediria, com o cronómetro, o tempo que demorara a nadar aqueles metros, foi-lhe inócua, comparado com o facto de saber que tinha feito a prova da sua vida.
Ao subir à superfície e ver o tempo que fizera, a diferença que separara o seu toque na placa do toque do seu principal adversário, e o sorriso que lhe invadiu a face ao saber que ambos haviam batido um recorde juntos, seguido do abraço de genuína felicidade trocado pelos dois amigos, ainda que rivais dentro de água, um sem o qual o outro não teria atingido tal resultado, e saber que a diferença que os separara era efectivamente ínfima, sentiu-se invadido de uma tremenda satisfação.
Via essa mesma satisfação patente na cara do seu treinador, que, descoroçoado com o segundo lugar alcançado pelo seu nadador, ainda assim sorria, pela forma quase perfeita com que este executara a prova, o felicitou de braços abertos.
Ele finalmente provara aos seus adversários, ao seu treinador, ao seleccionador, mas acima de tudo, a si mesmo, que todo o trabalho e esforço, lhe tinham valido aquilo que ele mais queria naquele momento, um lugar na equipa, e a memória da tarde onde nadara a melhor prova da sua vida, os 400 metros livres em piscina curta.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Pó ao pó...

Ele prometera-se a si mesmo que não ia chorar, mas a verdade é que ele não sabia o que fazer…
Naquela manhã, ele estava de luto, e ele nunca estivera de luto em toda a sua vida.
Nunca tivera que dizer adeus a alguém que realmente lhe importasse, ou por quem os seus sentimentos fossem genuinamente mais que simples respeito ou admiração.
Quando o tio lhe morrera, este tinha apenas 4 anos, e pelo que consegui apreender das suas memórias, nada além de uma pequena situação de brincadeira infantil lhe restava na mente, acerca do irmão do seu pai, que morrera quando o seu coração pura e simplesmente decidiu que era tempo de desistir.
No entanto, desta feita, o seu ídolo, o senhor das cassetes com os desenhos animados, o homem que ficara com ele na sala, só porque este não se achava capaz de ver aquele filme particular sozinho, o homem que fizera do seu pai quem ele era, em suma, o seu avô, ia desaparecer sob sete palmos de terra, e este tinha de lhe dizer adeus para sempre.
Muitos poderão discordar de mim, mas não percebo qual a necessidade de chorar aqueles que passam, afinal de contas, nada neste mundo é eterno, tão certo como eu também não o sou, e essa mesma passagem, não passa de uma simples transformação, como tantas das quais fiz eu parte, enquanto constituinte do todo e do nada que é este universo.
Mas eu não sou o humano que ele é, e não me cabe sequer compreender o que este sentia naquele momento… nunca ninguém o foi capaz.
Era estranho, por demais estranho, ver toda a família reunida, em reverência daquele que em breve ia desaparecer.
Na igreja, via os tios e tias, todos eles ali sentados, juntos de sua mãe, a recente viúva, chorando a morte daquele que fora o grande patriarca da família, a numerosa família que ali se encontrava, praticamente toda ela reunida, para se despedir.
Teria achado toda a situação extremamente bonita e tocante, fossem outras as circunstâncias.
Mas afinal de contas, ele sabia muito bem porque estava ali, e isso só por si, era terrível em mais sentidos do que alguma vez estivera disposto a aceitar.
No entanto, algo ainda mais estranho se passava na sua cabeça…
Toda a surrealidade da situação o atingia de forma tal, que ao invés de uma pura tristeza, e da dor que sentira na noite anterior, ao receber a notícia, este sentia uma terrível e insuportável apatia.
Naquele momento, enquanto o padre falava da pessoa que este tanto estimava, e o carinho por essa mesma pessoa era demonstrado em toda a sua beleza, este não conseguia verter nem uma única lágrima.
Mas mais estranho que isso, foi perceber que o mesmo se passava com os seus primos.
Mais tarde pensou tratar-se de choque, mas naquele momento, sentiu-se horrível e inapto face a tudo o que assistia, enquanto a apatia tomava conta dele.
No entanto, nada disso se podia comparar com a sensação que foi, no final da cerimónia religiosa, seguir em fila, para um último olhar sobre o corpo daquele que fora o seu avô.
Este jazia sobre uma mesa de madeira, belissimamente envernizada, sobre a qual se encontrava uma espécie de toalha mortuária, esplêndida, e até mesmo quase perfeita para a receber o corpo que recebia, coberto pelas flores que todos os familiares haviam trazido, com o tom de pele mais esbranquiçado que ele alguma vez vira, e com a pele tão gelada quanto o tampo da bela mesa onde se encontrava deitado.
Ao vislumbrar os membros da família à sua frente, via-os beijar a testa do seu ente querido uma ultima vez, num derradeiro gesto de carinho e afeição face aquele que ali se encontrava, deitado e inerte, sob a magnifica mesa de madeira envernizada, que ele nunca esqueceria, e vendo tudo isto, achou que o deveria fazer também, como que para provar a si mesmo que, apesar de não conseguir chorar, tudo o que sentia culminava naquele beijo, o ultimo que colocaria sobre a face do grande avô que ali se encontrava.
A caminhada até ao cemitério, composta pela família, amigos e admiradores da pessoa que partira na efémera noite anterior, fazia-se compor por um tom de decoro e decência, reminiscentes de algo como um verdadeiro cortejo real.
Nesse caminho, transportava uma pesada coroa de flores, que anteriormente adornava o corpo do seu avô, coroa essa quase tão pesada como a sua perda naquele momento.
Na chegada ao cemitério, percorrido o labirinto de intrincadas lápides e mausoléus, deparou-se com a ‘cova’, um tosco buraco, onde ali iria ficar a pessoa que na noite anterior estava viva.
Foi então que desabou toda a apatia que até então o mantivera controlado, ao ver, sob a queda das gotas de chuva sobre o caixão, que lentamente era baixado até ao fundo da ‘cova’, onde para o resto dos tempos, se é que me posso dar ao luxo de o supor, ficaria ali o que restava daquela que fora a pessoa que naquele momento, o fazia, assim como ao seu pai, que abraçava, chorar as lágrimas da dor de perder o seu avô, ao mesmo tempo que via o resto da família demonstrar o mesmo sofrimento.
Feitas as despedidas, vertidas todas as lágrimas, e rezadas todas as preces, lá se encontrava ele, naquilo que parecia apenas mais uma simples reunião da numerosa família a que pertencia, com o orgulho que mais tarde se viria a desmoronar na falsa ideia da família unida que tinha, tanta falta iria fazer quem acabava de partir.
Não obstante, toda a mortificação, todo o sofrimento, e todo o surrealismo daquele dia, havia ao menos mais uma distracção face a tudo aquilo, enquanto via com desagrado, o Benfica perder mais uma eliminatória para a Liga dos Campeões…

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Cinzas às cinzas...

Seria muito simples se a notícia tivesse chegado de outro modo, ou noutra altura, sem quebrar o conforto de uma situação banalmente agradável, no entanto, nada acontece quando se quer, e eu há já muito tempo que me apercebi disso.
Ele estava simplesmente entretido a enxugar a loiça da máquina de lavar, numa alegre conversa com a família, quando o telefonema chegou.
Sem grande alvoroço, viu a cara do pai ficar séria, no entanto julgando tratar-se apenas de mais uma chamada de trabalho, como tantas eram recebidas na casa.
Mas esse estado de espírito cedo se desvaneceu face à frase que o seu pai de seguida proferiria: ‘O vosso avô morreu hoje à noite’, para dar lugar a uma série de sentimentos que ainda hoje ele não consegue descrever.
O silêncio, que apenas durou uns segundos, rapidamente foi substituído pelo pranto de dor da sua jovem irmã, cujas lágrimas encharcavam lentamente a mesa da cozinha, ao passo que o seu pai e mãe discutiam o que se ia passar naquela noite, numa seriedade assustadora, enquanto ele, encostado ao lava loiça, observava, imóvel, a surrealidade de toda a situação.
Foi decidido que eles iriam naquela noite estar com o corpo, enquanto ele e a irmã permaneceriam até à manhã seguinte em casa, para depois atenderem ao funeral.
No entanto, nada disto lhe parecia real, enquanto falava, quase que apaticamente, com os pais sobre o que seria o dia seguinte.
Foi só quando deu por si sozinho na cozinha, a olhar o vazio enquanto os pais levavam a irmã para o quarto, e depois se despediam dele, quando percebeu tudo o que se passara naqueles momentos, que perdeu o controle das suas pernas, caiu no chão, encostando-se no processo à maquina de lavar, cujo conteúdo apenas minutos antes estivera a limpar, e que se viu sentado a olhar o vazio, com todas as lágrimas que não chorara até aí, a jorrarem-lhe pelos olhos, enquanto pensava na pessoa que acabara de desaparecer de vez da sua vida…

quarta-feira, 25 de junho de 2008

Chinês...

Ele já estava atrasado…
Estava atrasado para ir jantar com os seus amigos, mas ainda assim, o pai pediu-lhe que o acompanhasse por um bocado na visita ao seu avô.
Claro que isso não fazia parte dos seus planos, mas na sua idade, pouco daquilo que é realmente importante alguma vez fazia, e não lhe restava senão respeitar o que se lhe impunha.
Mesmo assim, foi com algum ressentimento que entrou naquele quarto de hospital esterilizado e desagradável, onde tudo se lhe aparecia coberto de doença e dor, além da incessante e desagradável ausência completa de cheiro.
Detestava hospitais, desde criança, pelo que lhe representavam desde pequeno, o sítio onde pessoas vivem e morrem.
Naquela idade, não lhe agradava de todo ter de ser confrontado com isso, e por isso mesmo incomodava-o estar ali.
Incomodava-o ainda mais ter de ver o que via, sem saber o que dizer, o que pensar, ou mesmo o que sentir.
Ser obrigado a ver uma das suas pessoas favoritas naquela situação, alguém que queria desde que se lembrava, era de um esforço enorme para ele, e mesmo assim, lá se encontrava, quando tudo o que queria era esquecer aquela situação toda e fugir.
Cedo percebeu que tinha de estar ali, e que precisava de ver aquilo que via.
O seu avô estava acamado, contando já com 79 anos, pode-se dizer que até então levara uma vida cheia, preenchida por assim dizer…
Eu vi muitos destes casos, e a meu crer, pouca espécie me fizeram, assim como este era simplesmente mais um deles.
Mas eu não sou humano como ele era, e não me cabe sentir o que ele sentia, mas sim, descrevê-lo…
Portanto lá estava ele, a olhar aquilo em que se tornara o ídolo do seu pai, o seu grande avô, deitado numa cama, dependente, desfeito, cansado e a sofrer com a sua presente existência.
E lá esta ele, a seu lado, sem saber o que dizer ou fazer para apaziguar a dor de alguém que durante tempo demais julgara constante no tempo.
Ainda se lembrava dos tempos de criança muito pequena, que nos fins-de-semana se refugiava na bela adega, convertida em sala de estar, onde o avô lhe colocava os vídeos com desenhos animados que gravara para os netos.
Lembrava-se das conversas de circunstância que se transformavam em discussões pedagógicas com as quais tentava aprender o máximo possível daquele que era o pai do seu pai, o patriarca da grande família de que se orgulhava.
Mas vendo-o ali, deitado, em sofrimento, e a pedir para poder finalmente descansar, não conseguia deixar de sentir o quão injusto era tudo aquilo.
Vira a saúde dele deteriorar-se com os anos, por causa de uma má anca e de um coração fraco, que, não obstante, nunca desistira, todas as vezes que havia fraquejado.
Lembrava-se da colecção de relógios e dos antigos cachimbos, que há muito tivera de deixar de fumar, do sorriso amarelado pelo tabaco e pela idade com que lhe cumprimentava e de como lhe perguntava que filme queria ele ver desta vez.
No entanto sabia que todos esses momentos haviam passado, e que dificilmente haviam razões para sorrir. Não naquele momento e situação.
Pior foi quando se viu só com ele, enquanto o pai ia falar com uma das enfermeiras de serviço.
O constrangimento e a incapacidade de lidar com o facto de que a pessoa de quem tanto gostava estava a desaparecer, desgastavam-no como nunca se vira obrigado a aceitar.
Pior era ouvir o desejo de findar que saia da boca dele, e ser incapaz de responder a isso de modo algum.
Quando se foi embora, um certo alívio, misturado com o desgosto de ter de presenciar tudo aquilo, preencheram-no, e a força que o seu pai demonstrava face a toda a situação ajudavam bastante.
Foi uma das ultimas vezes que viu o avô com vida, e uma das poucas vezes em que lhe pode beijar a testa, com o carinho que este lhe merecia.
No entanto estava já à porta do restaurante chinês, onde o aguardavam os amigos e um breve esquecimento de tudo aquilo que o perturbara na hora antes…

terça-feira, 24 de junho de 2008

High...

Era de um interesse abismal encontrar-se ali.
Depois do medo, ansiedade, e todos os restantes sentimentos que daí advêm, não foi com pródigo alívio que se viu naquele lugar.
De qualquer modo, era cedo demais para isso…
No entanto, naquelas primeiras semanas, onde tudo lhe parecia novo, inexplorado, e ser-se desconhecido era uma verdadeira bênção, ele apercebia-se que, aos poucos, e pela primeira vez em muito tempo, se estava a adaptar.
O mais estranho em toda a situação, era o facto de lidar com pessoas que pouco ou mal conhecia, e o conforto que daí surgia, à medida que lhes mostrava, lenta mas inocentemente, que as primeiras impressões são de se levar tão levianamente como tudo na vida, nunca demasiadamente a sério.
Após 3 anos de introversão, ingenuidade e desconforto, lentamente percebia que aquilo a que aspirava estava mesmo à sua frente, e pela primeira vez em muito tempo, sentiu-se em casa.
Cedo se apercebeu, porém, que não era tão fácil como julgava, e que, não obstante ser um ‘mundo’ diferente, os seus defeitos ainda existiam, ainda se faziam notar, e ainda eram passíveis de suscitar comentário.
Não obstante, a sensação de pertença, aliada à jovial ingenuidade e arrogância com que encarava as situações, causavam-lhe, e iriam futuramente causar-lhe, toda uma série de novos desgostos e preocupações.
No entanto, o bem-estar que sentia no seu novo meio, na sua nova situação de vida, e a generosidade que sentia da parte dos que acabara de conhecer, que o recebiam com uma facilidade que o surpreendia todos os dias, faziam-no sentir-se verdadeiramente feliz.
Não obstante, fases não deixam de ser fases, e no crescimento do meu companheiro, esta foi só mais uma de muitas que lhe levariam a tornar-se na pessoa que se tornaria.
Bem sei que ele não o quereria de outro modo…

sábado, 21 de junho de 2008

Veronne...

Desde que me juntei a ele, logo reparei que este possuía uma extrema admiração pelo seu primo, que o acompanhava no exacto instante em que me lhe juntei.
Mal sabia eu, que esta admiração urgia desde há muito tempo, forjada numa infância que tão-somente apanhei na ultima metade.
Ainda assim, percebi que esta o ligava ao primo, como liga um irmão mais novo a um mais velho.
Aparentemente sempre assim fora, ao longo dos anos, ao ponto de, aos seus olhos, este ser o seu melhor amigo.
Desde pequenos, a sua numerosa família, prolifera em primos e mais primos, os levara a formar um enorme grupo de amigos, e, em todos os Verões, sem excepção, era esse o seu grupo de escolha.
Mas como em tudo na existência humana, que acompanho desde há muito, todo o grupo cresceu, afastou-se, e para trás ficaram as criancices de miúdos que outrora os juntavam.
Assim, naquele Verão, que marcaria a primeira grande transição na sua vida, ele tentava manter a amizade que o ligava ao seu primo.
Assim sendo, todo esse Verão, passou-o com ele e os amigos deste.
Como pode compreender-se, na fase da vida em que estava, o meu companheiro tornara-se, à falta de melhor termo, introvertido, pelo que nos 3 meses que durou esse mesmo Verão, nunca se adaptou bem à sua situação.
Foi estranho, tendo em conta que conhecia todas as pessoas com quem lidava, fruto da sua amizade com o seu primo, perceber que mesmo assim, não sabia como estar com essas mesmas pessoas…
Continuava a achar que simplesmente não pertencia ao grupo onde se encontrava, e, não fosse o laço que o ligava ao primo, teria passado esse tempo sozinho.
Mas, assim como o ano anterior passara, também o Verão passaria, e ele finalmente encontraria o que procurava, assim como muito mais do que alguma vez esperara, mudaria na sua vida…

Artistic...

Foi tamanho o risco que correu, tamanhas a expectativas que sobre ele pesavam, que lhe era impossível saber se tomara a escolha correcta...
Afinal de contas, todo o seu futuro estaria dependente daquele momento em que, antes de cerrar os olhos para mais uma noite de sono, ele pensou na hipótese de fazer aquilo que tão somente uma pessoa esperara dele, facto o qual só mais tarde veio ao seu conhecimento.
No entanto, o meu companheiro tinha, sem querer, decidido determinantemente o que faria da sua vida, de tal modo que nem as advertências dos que o rodeavam, a preocupação dos seus pais, ou mesmo o facto de saber que se estava a atirar de cabeça para um mundo que lhe era completamente desconhecido, para um lugar que pouco ou nada lhe dizia respeito, tudo isso não era o suficiente para o demover da sua inconsciente decisão.
Muitas vezes ponderou e questionou-se sobre a validade dos motivos que o levavam a seguir aquele rumo, a seguir algo que a toda a gente surpreendia, facto esse que o regogizava de forma tremenda, não fosse para ele estranha a sensação de saber que era algo que não era esperado por qualquer um, mas afinal de contas, tudo nele era esperado, e sair dessa conformidade era o que mais assustava todos os outros à sua volta.
Não obstante, este deleitou-se a seguir o seu impulso, a seguir os seus instintos, e a por uma vez ser capaz de se surpreender a si mesmo.
O que encontraria seria talvez o único ambiente onde se sentiria realmente verdadeiro, onde se sentiria em casa, onde poderia ser aquilo, ou voltar a ser, quem fora anteriormente, ele mesmo...

Enfatuação...

Dizem que aquela primeira “paixoneta” é a mais engraçada de todas...

Depois de tudo o que tenho visto na minha larga existência, permitam-me que discorde.

Tudo bem que ele já gostara de outras pessoas, afinal de contas, era um adolescente, e isso fazia parte da fase na qual se enquadrava naquele momento...

Mas desta vez, apresentava-se de uma maneira completamente distinta, e a sua pouca, entenda-se nenhuma, experiência com o sexo oposto, nunca se lhe havia mostrado tão fastidiosa como então.

Até percebo que para vocês tudo isto se apresente como algo perfeitamente normal, mas é necessário ter noção que o meu querido companheiro, se assim lho posso chamar, não era propriamente um adolescente vulgar.

O problema, esse sim, residia no facto de nem mesmo ele saber isso, o que, caso tivesse ocorrido, ter-lhe-ia dado uma existência mais agradável naqueles anos que passou entre aquelas amuradas, que separavam brandões de laranjeiras.

No entanto ele dava por si, completamente enamorado por ela, como só um adolescente romântico, estouvado e inconsequente podia estar.

Obviamente, por muito fala barato que fosse, por muito extrovertido que tentasse ser, não sabia ainda em que mundo vivia, e que a sinceridade absoluta, vinda de um rapaz de catorze anos, não é propriamente fruto da inteligência do mesmo, assim como tudo o que dela advém, não é mais que a resposta normal de uma idade que se revela a mais estranha e obtusa de todas as idades.

Resumindo, não ser correspondido e vê-lo ser de conhecimento alheio era uma coisa chata, assim como todo aquele fatídico ano haveria de o ser.

Apesar disso, aquele ano passou, e por causa dessa sua enfatuação sincera, não correspondida, e muito pateta, como mais tarde se apercebeu ele, e como só a enfatuação de uma criança consegue ser, este tomou a melhor decisão de que alguma vez se lembraria, uma que lhe proporcionaria, talvez, aquilo que lhe faltara em todo aquele período: a sensação de pertença.