quarta-feira, 25 de junho de 2008

Chinês...

Ele já estava atrasado…
Estava atrasado para ir jantar com os seus amigos, mas ainda assim, o pai pediu-lhe que o acompanhasse por um bocado na visita ao seu avô.
Claro que isso não fazia parte dos seus planos, mas na sua idade, pouco daquilo que é realmente importante alguma vez fazia, e não lhe restava senão respeitar o que se lhe impunha.
Mesmo assim, foi com algum ressentimento que entrou naquele quarto de hospital esterilizado e desagradável, onde tudo se lhe aparecia coberto de doença e dor, além da incessante e desagradável ausência completa de cheiro.
Detestava hospitais, desde criança, pelo que lhe representavam desde pequeno, o sítio onde pessoas vivem e morrem.
Naquela idade, não lhe agradava de todo ter de ser confrontado com isso, e por isso mesmo incomodava-o estar ali.
Incomodava-o ainda mais ter de ver o que via, sem saber o que dizer, o que pensar, ou mesmo o que sentir.
Ser obrigado a ver uma das suas pessoas favoritas naquela situação, alguém que queria desde que se lembrava, era de um esforço enorme para ele, e mesmo assim, lá se encontrava, quando tudo o que queria era esquecer aquela situação toda e fugir.
Cedo percebeu que tinha de estar ali, e que precisava de ver aquilo que via.
O seu avô estava acamado, contando já com 79 anos, pode-se dizer que até então levara uma vida cheia, preenchida por assim dizer…
Eu vi muitos destes casos, e a meu crer, pouca espécie me fizeram, assim como este era simplesmente mais um deles.
Mas eu não sou humano como ele era, e não me cabe sentir o que ele sentia, mas sim, descrevê-lo…
Portanto lá estava ele, a olhar aquilo em que se tornara o ídolo do seu pai, o seu grande avô, deitado numa cama, dependente, desfeito, cansado e a sofrer com a sua presente existência.
E lá esta ele, a seu lado, sem saber o que dizer ou fazer para apaziguar a dor de alguém que durante tempo demais julgara constante no tempo.
Ainda se lembrava dos tempos de criança muito pequena, que nos fins-de-semana se refugiava na bela adega, convertida em sala de estar, onde o avô lhe colocava os vídeos com desenhos animados que gravara para os netos.
Lembrava-se das conversas de circunstância que se transformavam em discussões pedagógicas com as quais tentava aprender o máximo possível daquele que era o pai do seu pai, o patriarca da grande família de que se orgulhava.
Mas vendo-o ali, deitado, em sofrimento, e a pedir para poder finalmente descansar, não conseguia deixar de sentir o quão injusto era tudo aquilo.
Vira a saúde dele deteriorar-se com os anos, por causa de uma má anca e de um coração fraco, que, não obstante, nunca desistira, todas as vezes que havia fraquejado.
Lembrava-se da colecção de relógios e dos antigos cachimbos, que há muito tivera de deixar de fumar, do sorriso amarelado pelo tabaco e pela idade com que lhe cumprimentava e de como lhe perguntava que filme queria ele ver desta vez.
No entanto sabia que todos esses momentos haviam passado, e que dificilmente haviam razões para sorrir. Não naquele momento e situação.
Pior foi quando se viu só com ele, enquanto o pai ia falar com uma das enfermeiras de serviço.
O constrangimento e a incapacidade de lidar com o facto de que a pessoa de quem tanto gostava estava a desaparecer, desgastavam-no como nunca se vira obrigado a aceitar.
Pior era ouvir o desejo de findar que saia da boca dele, e ser incapaz de responder a isso de modo algum.
Quando se foi embora, um certo alívio, misturado com o desgosto de ter de presenciar tudo aquilo, preencheram-no, e a força que o seu pai demonstrava face a toda a situação ajudavam bastante.
Foi uma das ultimas vezes que viu o avô com vida, e uma das poucas vezes em que lhe pode beijar a testa, com o carinho que este lhe merecia.
No entanto estava já à porta do restaurante chinês, onde o aguardavam os amigos e um breve esquecimento de tudo aquilo que o perturbara na hora antes…

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